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Vem aí a recessão

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crato

De Caras, RTP, 19/6/2013 (http://bit.ly/12J0oFc)

 

On a tout reçu. Tout s’est déroulé exactement comme prévu. On a même pu faire la rotation pour optimiser la réception de la lumière sur les panneaux solaires.

— Jean-Pierre Bibring

Recebemos tudo. Correu exatamente como planeámos. Tivemos até de fazer uma rotação para otimizar a recessão de luz sobre os painéis solares.

— Jean-Pierre Bibring (tradução: Agência Lusa)

 

Não se lembravam da *excessão completa? Não se preocupem. Estou cá para os lembretes. Foi no dia 19 de Junho de 2013. Há muito, muito tempo.

Anteontem, durante um intervalo para café, liguei o computador e recebi uma notificação de um grupo do Facebook que conheço relativamente bem. Percebi de imediato a grave consequência do meu espanto: a *recessão escapara-me. Obrigado, Fernando Venâncio.

Agora, concentremo-nos apenas na grafia da epígrafe — sim, só na grafia da epígrafe: deixei, há muitos anos, de criticar traduções na praça pública.

É verdade, não correu exactamente como planeado, mas correu como previsto. Aliás, só não poderia prever ocorrências de *recessão em vez de receção quem nunca se debruçou sobre a função da letra ‘p’, parte do grafema complexo (dígrafo) <ep>, em palavras como decepção, excepção, intercepção, percepção ou recepção (e fiquemo-nos por estas). Sim, há letras que fazem parte de grafemas complexos (dígrafos), como a letra ‘c’ faz parte do grafema complexo (dígrafo) <ac>, quando nos referimos, por exemplo, a palavras como acção, coacção, infracção, reacção ou subtracção.

A letra ‘p’ tem função diacrítica em recepção? Tem, certamente. Aliás, basta apreciar a *recessão da Lusa, propagada pela SIC, pelo Jornal de Notícias, pelo Correio da Manhã, pelo Destak e pelo Expresso (e por outros que, entretanto, felizmente, corrigiram), para perceber – ou conjecturar com algum grau de exactidão sobre – as razões que levam a uma ocorrência de *recessão, em vez de receção.

Efectivamente, nas palavras em -epção,  a letra ‘p’ tem um valor diacrítico. Mas não só. A letra ‘p’ é um sinal gráfico que permite distinguir, de forma clara, a palavra – isolada ou em enunciado, mesmo estando descontextualizada –, tendo esse carácter distintivo um impacto na memória ortográfica dos leitores/escreventes. Na ausência do sinal (‘p’ em recepção), uma ‘receção’ pode degenerar e transformar-se em *recessão. Não foi planeado, mas estava previsto. Exemplarmente, recordemos quer a nótula II do meu comentário à *excessão da entrevista a Nuno Crato, quer este parágrafo de artigo que escrevi no Público, há precisamente nove meses (substitua-se ‘concepção’, ‘conceção’ e ‘concessão’ por ‘recepção’, ‘receção’ e ‘recessão’)

A supressão do “p” em palavras como “excepção” levará doravante quer a um aumento de ocorrências de *excessão em vez de exceção (sic), quer à necessidade de em publicações portuguesas se indicar, como já acontecia antes do AO90 em publicações brasileiras, que “’excessão’ (com dois ss) constitui erro grosseiro” (vide Manual de Redação e Estilo do jornal Estado de S. Paulo), mas com um aditamento para a norma portuguesa de uma nota acerca da diferença entre “concessão” e “conceção” (sic). Sim, para a norma portuguesa. Porque, em português do Brasil, a “concepção” mantém-se imaculada: ei-la, a célebre “unificação das regras”,

quer este artigo de Fernando Venâncio, no caderno Actual, do Expresso, em 5 de Abril de 2008, :

O Acordo prescreve a escrita da consoante sempre que pronunciada. Assim, os brasileiros manterão «recepção», «concepção» ou «aspecto», e nós passaremos a grafar «receção», «conceção» (com previsíveis confusões com «recessão» e «concessão») e «aspeto».

É muito provável um aumento de ocorrências de acessão por aceção, concessão por conceção, intercessão por interceção ou recessão por receção, devido à atestação de ambas as formas. Contudo, como sabemos, apesar de não atestadas, há *excessões. Ocorrências de *acessão por acepção demonstram que, mesmo na presença de sinal gráfico, surgem ocasionalmente resultados diferentes dos desejados (ou esperados). Por esse mesmo motivo, com a supressão do sinal gráfico (neste caso, do ‘p’) é previsível um aumento destas ocorrências (1), (2), (3), (4) ou (5).

***

Thaís Nicoleti de Camargo  — a quem Carlos Faraco contou esta deliciosa história: “As poucas mudanças podem ser aprendidas em não mais que 15 minutos” (uma versão actualizada da projecção “basta uma meia hora para os professores aprenderem as novas regras. E depois é aplicá-las” de Paulo Feytor Pinto)— pronunciou-se nos seguintes termos, há cerca de um mês, no Senado Federal do Brasil:

Eu aqui estou apresentando uma percepção que têm as pessoas que trabalham com o idioma no seu dia a dia, que produzem textos escritos. Então, a percepção disseminada.

Thaís Nicoleti de Camargo e a Secretaria de Registro e Redação Parlamentar do Senado Federal do Brasil adoptam o Acordo Ortográfico de 1990 e podem grafar uma percepção. Porquê? Porque escrevem em português do Brasil. Eu também posso apresentar uma percepção. Porquê? Porque escrevo em português europeu e não adopto o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Efectivamente, é essa a diferença.

Post scriptum: Entretanto, o outro espectáculo continua. Depois de ler este texto de António Fernando Nabais, fui dar uma espreitadela à página da Câmara Municipal de Óbidos. A vereadora Ana Maria Ramos de Sousa é a excepção a este triste rol de *contatos. Aliás, esta intervenção do antigo vereador José Machado explica muito do que por aí (sim, por aí) se passa:

Actualmente [em 2012], o Diário da República apenas publica os textos enviados pela Câmara Municipal que estejam escritos conforme o actual Acordo Ortográfico, devolvendo todos os que não estejam em conformidade com o referido acordo” (cf. Acta n.º 15 (25.07.2012) e Acta n.º 21 (03.10.2012). 

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Filed under: acordo ortográfico, política nacional Tagged: agência lusa, António Fernando Nabais, assembleia da repúbica, câmara municipal de óbidos, cometa, Expresso, Fernando Venâncio, governo, IILP, ILTEC, Jean-Pierre Bibring, nuno crato

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