Estava sossegado a tomar o meu café, depois de umas páginas sobre o Cícero e o Timeu de Platão, quando, sei lá bem porquê, comecei a ler as notícias do dia e me deparei com um título fundador (já S. Tomás de Aquino lembrava, no De Ente et Essentia e bem acompanhado pelo Estagirita, que “[q]uia parvus error in principio magnus est in fine”). Decidi, muito rapidamente, trazer de novo ao Aventar aquela que é, aparentemente, uma das mais enigmáticas bases do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90): a XVI.
Segundo o Público, «[d]epois de Áustria, Finlândia, Alemanha e Israel, Portugal é o quinto país onde a co-adopção de crianças por casais homossexuais foi aprovada». Acrescentaria que, sendo o quinto país em que a co-adopção de crianças por casais homossexuais foi aprovada, Portugal será muito provavelmente o primeiro a não saber escrevê-la. Salvo honrosas e excelentes excepções, como o Público.
Efectivamente, segundo a base XVI do AO90, «[n]as formações com prefixos (como, por exemplo […] (co- […]), só se emprega o hífen nos seguintes casos: a) Nas formações em que o segundo elemento começa por h: […], co-herdeiro […]; b) Nas formações em que o prefixo ou pseudoprefixo termina na mesma vogal com que se inicia o segundo elemento […]; Não se emprega, pois, o hífen […] Nas formações em que o prefixo ou pseudoprefixo termina em vogal e o segundo elemento começa por vogal diferente […] coeducação».
Ora, sabendo nós que não existe nem *hadopção (não havendo razão para *co-hadoção), nem *odopção (não havendo motivo para *co-odoção), nada no AO90 autoriza que se interponha um hífen entre o prefixo ‘co-’ e o segundo elemento, ficando, mais uma vez, patente o falhanço das propaladas acções de formação e a completa dependência do Portal da Língua Portuguesa e do conversor Lince. Como, para muitas almas, o AO90 se limita à base IV, achando, imagine-se, que «[a]gora “facto” é igual a fato (de roupa)» e que o debate ficou «lá atrás», é natural que tenhamos chegado a este ponto.
Outro problema, além da deficiente compreensão do texto do AO90, prende-se com a inexistência de coadoção (sic e para quem não souber) no Vocabulário Ortográfico do Português (VOP).
Não havendo coadoção (sic), também não há outras hipóteses, como:
- a excelente co-adopção (que respeita o texto de 1945: “[e]mprega-se o hífen em (…) compostos formados com o prefixo co, quando este tem o sentido de «a par» e o segundo elemento tem vida autónoma: co-autor, co-dialecto, co-herdeiro, co-proprietário);
- essa abstrusíssima *co-adoção, adoptada, em primeiro lugar, pela Lusa e, depois, pelo Diário de Notícias, pelo Expresso, pelo jornal I (não adopta e muito bem o AO90, mas não traduz para ortografia portuguesa europeia os despachos da Lusa), pelo Jornal de Notícias, pelo Record, pela RTP, pela SIC, pela TSF, pela Visão (com um hilariante “[e]sta notícia foi escrita nos termos do Acordo Ortográfico”), enfim, já chega – não, não chega, temos também o Partido Socialista, claro, o autor do diploma;
- uma improvável *coadopção (mistura perfeita de 45 e de 90: adopte-se num vocabulário da mistela perfeita; mistela perfeita, pois, a TVI24 conseguiu).
Quanto ao Vocabulário de Mudança (VdM), co-adopção é palavra que não se vislumbra e que deveria estar algures entre o co-administrar e o co-aluno.
Contudo, apesar de a palavra não constar nem do VOP, nem do VdM, o Lince transforma a co-adopção em coadoção (sic), ignorando (muito bem e como se esperava) *coadopção.
Para quem se limita a fazer contas sobre o número de palavras alteradas com o AO90, este pode ser um excelente indicador de que o caminho não é o número de palavras existentes seja onde for: o elemento a ter em conta é qualitativo. Sim, porque há vida, além da correcta co-adopção, da coadoção (sic) do AO90 e da mistela *co-adoção.
O meu fim-de-semana tem, como se vê, hífenes. Espero que o vosso também. Desejo-vos um óptimo fim-de-semana.
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